O mal-estar na civilização dentro do Service Desk

Ou como um gestor pode lidar com um funcionário que se atrasa periodicamente

Aviso aos navegantes: esse não é um artigo de cunho prático.

Você — com certeza — não vai concluir essa leitura e usar diretamente técnicas no seu centro de suporte. Desculpe, mas de vez em quando é preciso remoer ideias, mesmo que por puro exercí­cio mental.

Dedico esse artigo a um supervisor que participou de meu curso de gestão de suporte técnico. Sua queixa era comum: um funcionário não chegava no horário certo. Um ponto de atendimento ficava vazio durante o horário de pico. E isso contaminava o ambiente, fazendo com que outros colegas também se atrasem de vez em quando/sempre.

Por isso, na semana passada separei o volume XXI das obras de Freud e reli o texto homônimo do vienense pai da psicanálise.

Enquanto percorria o texto, identificava a desgraça em que se transformam pequenas situações do cotidiano para um novo supervisor de suporte. Ele acaba de ser promovido a uma função de gerência. Seus superiores esperam que tenha bom desempenho na função, mas também sabem que promovê-lo é uma das formas de reter esse talento na empresa (Estarei enganado? Duvido, a menos que meus olhos, ouvidos e cabeça estejam totalmente desparafusados). Ou seja, elevando-o a um cargo e fazendo ganhar mais, ele assume um novo status. De quebra, rende rodadas de cerveja para os amigos e alegria efusiva em casa e orgulho dos pais (“— Meu filho está no caminho certo.”).

O gestor senta na sua nova cadeira com a alma lotada de habilidades técnicas (as “hard skills”, um estrangeirismo que o HDI tenta embutir em nossas cabeças tupiniquins e que com certeza vai colar, pois nosso mercado corporativo de TI identifica sinais de elegância no hábito de usar palavras não portuguesas) e planeja melhorias a realizar no departamento.

Mas se embanana e tropeça diante de situações triviais, como um funcionário que insiste em apresentar-se atrasado. Nenhum curso de três dias há de colaborar nessa parada. Infelizmente. O que auxilia é pensar, refletir, discutir com seus amigos e pares, conversar com os próprios funcionários. Hoje, administrar vai além de conhecer “melhores práticas”. Exige também conhecimento cientí­fico sobre comportamento do ser humano.

Da origem do mal-estar na civilização

Retomando o fio perdido sobre o mal-estar, pensei no antológico artigo escrito por Freud. Decidi me escorar nesse autor, o que não significa que concorde com todas as suas ideias (e esse é um truque barato e fuleiro que adoto para evitar ser criticado indiscriminadamente).

Freud foi um estudioso da mente humana. Não da parte orgânica, mas da psicológica. Inconsciente, mecanismos de defesa, superego e interpretações dos sonhos são algumas de suas sacadas. Não é à toa que engendrou sua teoria — psicanálise — sobre o comportamento humano no iní­cio do século passado e que ela perdura até hoje.

E rende livros até na área corporativa como Empresários no divã — como Freud, Jung e Lacan podem ajudar sua empresa a deslanchar (dica de Thiago Lima em outubro/2012).

Freud relata que há um permanente conflito (o mal-estar) entre os desejos do indiví­duo e as regras da civilização.

Todo sujeito tem dentro de si uma busca permanente da satisfação de seus desejos. Alguns chamam a isso “busca da felicidade”, o que para cada qual é a posse de um objeto ou outra coisa parecida. Se quiser saber mais, leia as peças de Nelson Rodrigues e como o ser humano é prisioneiro de paixões avassaladoras.

Porém as coisas não são fáceis. Desde o iní­cio dos tempos, as famí­lias e tribos se reuniram para dividir tarefas e se proteger melhor dos inimigos. Com isso, algumas práticas, tabus e costumes foram estabelecidos para a convivência mútua, incluindo a repressão de alguns desejos individuais em prol do grupo.

A base dessas regras e freios é evitar que as pessoas se matem mutuamente (apesar de quê, no trânsito e no futebol, parece que nossos mais í­ntimos impulsos desdenham todo e qualquer código de posturas).

A liberdade total foi castrada. Você talvez nem pense nisso: fazer sexo com filhos ou ter mais de uma esposa ao mesmo tempo são atos proibidos e nem imaginamos os motivos, os quais estão recônditos (escondidos profundamente) em nossa sociedade. Esse segundo item por exemplo, manter ví­nculo com apenas uma fêmea, aumentava — no passado — a possibilidade de perpetuação da espécie, pois oferecia chances de reprodução a quase todos os machos, evitando o “acúmulo de mulheres” e a decorrente raiva e belicosidade dos desprezados contra o felizardo.

O nosso técnico de Service Desk

Então lá está nosso técnico de Service Desk. Acorda às dez da manhã, bebe uma Heineken, come um croissant, examina seu iPhone 5, pega sua Harley-Davidson e pilota na direção do serviço.

Infelizmente, esse é o seu sonho. Seus desejos.

Ele não consegue vivenciar tal situação. Na realidade, acorda às cinco da matina num bairro da Zona Leste, espera na parada seu ônibus sob uma fina garoa. Mais duas linhas de metrô e chega ao local de trabalho. Está amassado, molhado e mal-humorado. Tem quase trinta anos, uma barriga frouxa que resiste a desaparecer.

Toma acelerado seu café pingado na padaria, entra no prédio e começa a atender usuários que, via de regra, estão descontrolados emocionalmente e ardem por soluções urgentes para sabe-se-lá-o-quê, problemas que muitas vezes não são responsabilidade direta do nosso técnico.

Maldição, quanto sofrimento! Que vontade de explodir! Por que tenho essa vida com tantas aflições e dificuldades? E o Neymar do Santos que leva aquela vida nababesca?! E tem o curso de inglês à noite; sem tempo para jantar e voltar para casa a uma da manhã. Queria sair do trabalho uma hora antes. E nem posso fazer concessões para a loira da Exportação (“— Vai que rola algum clima no futuro…”), senão o chefe me atormenta dizendo que tal atendimento não é permitido pelo nosso catálogo de serviços. O negócio não é servir bem aos usuários?

E quando registro um incidente ao meu estilo, sou xingado por que não segui o processo, essa ordem pré-definida, esse regulamento que define quando, onde e como cada ação é efetuada. Isso me deixa de mãos amarradas para um atendimento diferenciado e que me proporcionaria um prazer maior.

Pois é…

Você que me lê pode pensar que o ser humano de hoje controla suas ansiedades, é mais evoluí­do para o conví­vio em sociedade do que nossos ancestrais. Talvez não. Freud registra que o primitivo dentro de nós encontra-se perfeitamente conservado. Ele faz uma analogia com animais pré-históricos (os dinossauros, por exemplo) que desapareceram com a evolução das espécies (Darwin) e deram lugar aos mamí­feros etc. Mas os crocodilos estão aí­ feitos provas-vivas da sobrevivência das coisas mais primárias e primitivas.

Sublimação

Existem três formas do ser humano escapar de tanto sofrimento (resultado da eterna luta entre seus desejos e as normas da sociedade).

Substâncias tóxicas (crack, álcool, cigarros, maconha etc.) que nos livram dessa insuportável realidade; produzem uma sensação temporária de alí­vio, mas a gente sabe onde descambam.

Outro jeito de driblar o sofrimento é colocar o prazer em segundo plano, desapegando-nos de nossos desejos e vontades. Assim, se nada queremos (não quero um carro novo, não desejo a mulher do vizinho, não quero a camiseta nova do meu time de futebol etc.), não será horrí­vel se nada alcançarmos em relação aos nossos desejos. O budismo é uma religião que prega tal maneira de viver. Porém isso é, praticamente, desistir da vida.

A terceira forma denomina-se sublimação, um mecanismo de defesa que canaliza a energia produzida pela agressividade e aflições para atividades como arte e esportes. Ou atividade profissional, mas não aquela que optamos realizar por pressão da necessidade (“— Preciso comer, me sustentar, pagar contas etc.”), e sim por uma escolha soberana.

E o funcionário atrasado?

Prezado novo gestor, dedique-se ao que lhe é mais valioso: pensar. Pare de executar tarefas rotineiras e enfrente seus desafios. Lembre-se que, dito por Freud, todo ser humano tem uma dose armazenada de agressividade por que não consegue satisfazer seus desejos em contrariedade com as normas da sociedade.

Como você facilita seu funcionário a extravasar tal energia? Futebol com a galera? Sala de descompressão com videogame? Talvez produzam efeitos temporários, mas convenhamos que será melhor que nada.

E o principal: dentro de sua organização, você representa a civilização. Quanto mais queridinho tenta ser, mais descontentamento gera.

É você quem impõe limites que cada um deve obedecer em relação aos seus desejos pessoais. Ainda que os técnicos fiquem frustrados, para uma convivência pací­fica (mas nem por isso menos conflituosa internamente na pessoa) é necessário que todos acatem as normas contratadas.

Entre elas, chegar no horário combinado.

Smack

EL CO

11 comentários em “O mal-estar na civilização dentro do Service Desk”

  1. Muito bom, El Co…

    Resumiria todo conteúdo com os três últimos parágrafos, os quais já eram minha conclusão aos questionamentos do início logo após ler o título do artigo.

    Grande abraço e ótima semana.

    Leandro, El Feo

  2. Bom texto, prendeu minha atenção…

    Mas.. ao final, ainda me restou a dúvida: Como fazer com que a regra seja cumprida?

    Achei ótimo, um balde de água fria. O leitor esperando que a liderança seja entregue de mão beijada, ao final, o balde gelado é jogado na cabeça: Prezado gestor, não tem receita de bolo, pense e atue.

  3. Cada caso é um caso. Se o cara se atrasa de vez em quando/quase nunca, não há problema. Todos sabemos que o transito nas grandes cidades não ajudam, todos tem problemas de vez em quando, e o caro deve comunicar seu atraso.
    Se o cara se atrasa quase sempre e é Bom, verifica-se a possibilidade de mudar o horário do cara, de repente mora longe, está com algum problema, etc. Mas se no fim, nada resolver, manda embora. Não tem jeito. Uma maçã podre pode contaminar o cesto, se todos vêem um chegando sempre atrasado e não acontece nada, vão por via de regra, começar a se atrasar também.

  4. Caro Marcos, vejo na frase “o cara se atrasa quase sempre e é Bom” um grande paradoxo.

    O que é o cara ser “bom”, neste caso? De que adianta ser tecnicamente competente se não está lá para cumprir sua função quando deveria?

    Abraço.

    Leandro

  5. Mirarelli: dura lex.

    Marcos: o combinado não é surpresa. Quando cito atrasado é quando o sujeito descumpre o SLA combinado repetidas vezes, hehehe.

    Abrazon

    EL CO

  6. o resumo da ópera pode ser apenas simplesmente uma conversa no inicio do primeiro dia do contrato entrar em vigor para esse funcionário recém-contratado ficar ciente (prática da ambientação) de que terá que cumprir algumas regras e normas administrativas para poder permanecer na empresa. Com essa orientação administrativa inicial (que geralmente se deve fazer no momento da primeira entrevista) o funcionário certamente poderá se programar para chegar sempre com antecedência no seu posto de trabalho. Havendo excessões constantes quem perde é a empresa que não prima pela pontualidade e não valoriza esse tempo desperdiçado. Normalmente é praxe em qualquer empresa séria a realização dessa ambientação junto ao novo funcionário e explicar quais são esses parâmetros e se o mesmo pode ter algum tipo de tolerância para esses atrasos. Não havendo tolerância é bom remanejá-lo para outro turno ou mesmo para outra função em que a ausencia do mesmo não cause tanto transtorno a rotina do setor e perda para a empresa. Afinal tudo na vida é negociável. Não havendo isso melhor contratar outra pessoa para exercer a função com a visão de se sua importância para aquele segmento. Um abraço!

  7. Salve, Paulo.

    Teoricamente me parece coerente seu comentário. Mas, por vezes, a empresa pede ao funcionário para suprir uma demanda elástica, solicitando ao mesmo que fique mais algumas horas.

    Por vezes, o técnico é muito bom e torna-se complicado (na mente do gestor) literalmente dispensar o funcionário. Até por que isso implica em grande custo adicional (recrutamento, seleção, treinamento do novo colaborador etc.).

    Assim, eu não acho tão simples – apesar de bem parecer – o 8 ou 800 proposto, hehehe.

    Abrazon, bro.

    EL CO

  8. Leandro, demorei a responder, estava de férias. rsrsrsrs

    Explicando, um técnico Bom, é aquele que resolve todos os problemas que caem no seu colo e se chegasse no horário seria ótimo, concorda?

    Quando uma empresa não paga salário para ter um funcionário ótimo, você preferiria ter:

    Um funcionário que se atrasa, 20, 30 minutos todo dia, digo atraso, não falei em falta, e quando chega resolve TUDO;

    Um funcionário que chega sempre na hora, mas que quando aparece um problema um pouco mais avançado, não consegue resolver ?

    Você vai se arriscar a mandar o técnico que resolve mas chega atrasado e contratar o que chega no horário e não resolve? Quanto tempo até conseguir um técnico que chega no horário e resolve, com o salário e benefícios que a empresa oferece?

    Não é tão simples assim tomar a decisão de mandar um cara problemático com relação à horário embora, digo com conhecimento de causa, no service desk que supervisiono, temos o caso de um cara que está há 5 anos na empresa, resolve TUDO, porém se atrasa 20 minutos todo dia. Vai mandar ele embora? Eu não. Os outros 9 que chegam no horário, resolvem quase a mesma coisa que ele, juntos. =)

  9. Bom dia, Marcos.

    Pois é… com tu disseste, são decisões. E decisões nunca são simples, porque sempre implicam em renúncia. Entre o bom técnico que chega atrasado constantemente e aquele que tem limitação técnica mas está sempre ali, teria duas decisões possíveis:

    Primeiramente capacitar o segundo profissional, pois é mais fácil capacitar tecnicamente um funcionário que mudar sua índole.

    Se a primeira opção falhar, sorry… vamos atrás de um novo profissional.

    Cumprir horário, quando elemento de contrato de trabalho, é obrigação do funcionário. Se ele não cumpre cláusulas contratuais e eu faço vistas grossas porque ele é tecnicamente bom, estou abrindo a possibilidade de questionamento sobre a importância do cumprimento destas normas por todo quadro. Não vejo isto como muito saudável para empresa.

    Agora, há uma terceira opção, que é a do relaxamento das normas contratuais relacionadas a cumprimento de horários, neste caso para todos os funcionários. Para isto, deve ser criada uma política de metas diárias que permita a flexibilização destes horários a cumprir…

    No teu caso, que possui experiência e gerencia um caso que serve como exemplo que contraria minha posição, não podemos deixar de considerar que é um caso particular, com características que o fazem único. Há sempre a necessidade de estudo de caso, pois a generalização é sempre burra. Sendo assim, estás certíssimo em tua decisão.

    Abraço e sucesso, meu velho.

    Leandro

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